A professora Letícia Saltori é nossa correspondente em primeira mão durante os eventos do WMTRC em Innsbruck-Stubai, na Áustria.
E contou para nós a sua experiência correndo a distância Short Trail 45k, com 3100m de ganho positivo no Mundial.
A largada em um campeonato mundial é estilo confronto medieval, a galera sai com fome de vencer, se bobear você cai porque a euforia é grande! No meio do bolo nós éramos o combatentes de trás, aguardando a melhor oportunidade para atacar, já os da frente montado no cavalo com armadura e bem equipados. Uma largada controlada de 600 mts passando aquele trail city que mostrei nos stories do Instagram do Mountain School (uma pista de com pedras e alguns obstáculos, construída para demonstração do esporte trail bem no coração da cidade).
Relargamos em frente a ponte principal, aí o trem ficou louco, em questão de poucos kms eu via muita gente ficando no caminho. Logo de cara pegamos uma subida forte até km 06, muitos trechos onde era impossível ultrapassar, era mão nos joelhos e força pra subir.
Depois veio uma descida para aliviar as pernas, fui procurando a melhor maneira de deixar o corpo fluir tentando buscar passagem, tinha que tomar muito cuidado porque ao lado direito tínhamos um precipício, qualquer deslize era fatal. As corridas no asfalto até chegar no km 10 foram boas, tinha perna pra correr, segurei um ritmo bom, no posto de abastecimento encontrei o Togumi que fez a troca das minhas garrafas de hidratação, fiz a transição e voltei pra pista, fração de poucos minutos.
Procurava me manter nos grupos, eu era carregada pela onda humana de corredores fazendo muita força, fomos assim até chegar no km 22 que era o nosso próximo PA, ali eu mesma fiz o abastecimento de água, catei mais alguns géis caso precisasse, senti um leve desconforto abdominal, olhei para o banheiro, mas por empolgação em querer voltar logo eu não parei, segui meu caminho, olhei pra cima e vi que ali seria nosso trecho mais duro da prova, não que os outros não tinham sido, mas a soma do começo de prova e as subidas seguidas não eram nada comparadas ao que estava por vir, pra vocês terem uma ideia, essa subida se chamava Dolomitas, pra quem conhece ou não, era algo muito parecido com uma subida bem conhecida na Itália, a porcentagem de inclinação é absurda, um zigue zague de matar onde você olha pra cima e não vê o fim, as pessoas parecem formiguinhas. Ali eu já tinha preparado minha mente para suportar tudo que viesse, só não esperava que por conta da força que eu imprimi pra subir forte, num corre anda insano, meu abdômen piorou a dor, senti que precisava urgente ir ao banheiro e que se não fosse acabaria fazendo na calça mesmo, ou melhor no shorts!
Suportei até onde podia e não parava de fazer força, enfim chego no topo e olho uma imensidão de neve no topo, percebi que se eu desse mais uns passos seria fatal, desespero bateu e eu comecei a suar, apesar do calor e de já estar suando muito, coisa que não me acontece, eu comecei a suar frio, arrepiar os pelos do corpo, a força pra subir somada a força pra segurar o “número 2” começaram a acabar comigo, procurei loucamente alguma moita pra me amparar, mas sem sucesso, era muita neve naquele trecho, vi árvores, mas estavam muito longe, nem tanto, mas pra situação que eu estava, qualquer 100 mts era muito, olhei pra fora da pista e para o alto do meu lado esquerdo, vi uma pedra grande, mas tinha que sair da rota, não pensei muito, corri e quase não deu tempo, sorte o shorts ser largo é só deu pra puxar pro lado, ufa! Que alívio!
Segundos depois voltei pra rota da prova, abdômen muito dolorido com cólica, o trecho seguinte era descida e parece que mesmo parando e se sentindo aliviada, a dor me acompanhou por pelo menos 5 km, precisei diminuir o ritmo, parei mais uma vez pra ver se resolvia, mas não era nada além de cólica da força que eu vinha fazendo para me manter bem na prova, 5 km depois com a dor reduzida eu voltei muito confiante. Dei graças por chegar melhor e mais inteira no km 30, senti outro grande desafio, lá na largada eu encontrei a menina da Alemanha que venceu Zegama.
Conversamos e ela alertou que estava com risco de tempestade, me viu de regata e ficou preocupada, pediu que eu ficasse atenta. Eu não dei muita atenção porque estava um calor de mais de 25 graus, tomei um torrão na primeira metade da prova, mas ali no 30 eu vi que a profecia da Daniela poderia se cumprir, a junção da neve e a parte mais alta da prova, o tempo fechou geral e eu comecei a sentir através do vento que começaria a chuva e com certeza tempestade, minhas mãos incharam e o corpo ficou vermelho pela queda de temperatura, suportei bem até o 36km onde encontrei o último PA e o Bonato me aguardava para apoio lá era minha última subida mais longa, escutava seus gritos lá de cima, era uma pista de esqui, olhei pra cima e a pista era interminável, um zigue zague mais longo com cotovelos gigantes, não tinha fim, intercalei corrida com caminhada pra conseguir chegar inteira no topo e iniciar a descida, último trecho da prova.
Não via a hora de chegar no PA, gastei muita energia fazendo força pra subir e descer que a fome bateu forte, foi a primeira vez que sentei em um PA e falei: Bonatto me passa tudo que tiver, red bull, coca, e já pega laranja que tô cheia de fome, aquilo me revigorou! Segundo o Bonato, neste posto não teve um que passou inteiro, parecia cenário de guerra, já não tínhamos mais força pra subir, mas eu não podia desanimar porque sabia que ainda faltavam 2 intermináveis kms para atingir o ponto mais alto e descer, comi, bebi, respirei fundo e saí, poucos metros da saída eu comi mais 1 gel para vocês terem noção da fome que eu estava, era gosto de mousse de maracujá, dei aquele último gole de água e fui firme pro trecho final da subida.
Finalmente cheguei no km 39, me alegrei e me preocupei ao mesmo tempo, começou o dilúvio e o frio piorou, pensei que iam me tirar da prova, pouca visibilidade, mas o suficiente pra sentir um vazio no estômago só de olhar pra baixo, era muito alto e passávamos tirando uma fina do precipício, eu que não tenho medo de altura senti muita vertigem, não desviava a atenção dos metros a frente e dos meus pés, segui firme porque a partir dali era uma descida forte de 6 km até a reta final, estava sonhando com aquele momento!
Desci embalada nos primeiros quilômetros, quando entramos na floresta percebi o chão mais liso, até que o primeiro tombo veio, opa atenção redobrada! Embalei de volta e opa! Outro tombo ainda pior, sistema de alerta ativado e segurei um pouco as pontas, temia jogar a prova toda fora por conta de alguma lesão grave, aquela descida era muito perigosa e parecia um sabão, até que finalmente chegamos na estrada, poucos metros da linha de chegada, ouvia o locutor anunciando os atletas, apertei o passo pra curtir o momento final, fui com toda força que restava, torcida brasileira me aguardando, que energia e que sabor poder concluir a meta junto dos melhores atletas do mundo.
Terminei muito feliz por entregar tudo que eu tinha, por voltar a caminhar hoje no pós prova com a sensação de que eu estava preparada e que eu quero voltar pra um mundial ainda mais forte!
Letícia Saltori terminou a prova na 80º lugar em 6:32:22 e o Rogério Silvestrin em 57º lugar em 5:05:42